Pouco mais de três anos após tragédia em Mariana (MG), o País se deparou em 25 de janeiro último com novo desastre, desta vez em Brumadinho, no mesmo estado. As causas da ruptura dessa última barragem de contenção de rejeitos da Mina Córrego do Feijão, da Vale S.A., ainda estão sendo investigadas. Mas especialistas não tem dúvida: tragédia dessa monta poderia ter sido evitada.
Segundo comunicado da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Minas Gerais, a barragem em Brumadinho iniciou suas atividades na década de 1970, paralisadas desde 2016. Após expansão, ocupava área de cerca de 27 hectares e 87 metros de altura. Como consequência da ruptura, até o fechamento desta edição, dados oficiais eram de 110 corpos encontrados e 238 pessoas desaparecidas. Conforme a ONG WWF-Brasil, “aproximadamente 125 hectares de florestas foram perdidos, o equivalente a mais de um milhão de metros quadrados, ou 125 campos de futebol”. E a segurança hídrica de milhões de brasileiros está ameaçada pelo vazamento de rejeitos contaminados, que seguem o curso do Rio Paraopeba, afluente do São Francisco.
“Barragens deveriam ser construídas a 5km, 10km, 20km de distância da cidade, dependendo da extensão e características. Além da população, alojamento, refeitório, oficina, nada disso deveria estar a jusante da barragem”, enfatiza Bruno Milanez, professor do Departamento de Engenharia de Produção e Mecânica da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Carlos Barreira Martinez, professor do Departamento de Engenharia Mecânica da Universidade Federal de Itajubá e de pós-graduação em Engenharia Hidráulica da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), vaticina: “É crônica de um desastre já anunciado há muito tempo.”
Com estabilidade auditada pela empresa alemã Tüv Süd em agosto de 2018, a barragem, em processo de descomissionamento (desativação), teve licença ambiental para reaproveitamento dos rejeitos aprovada em dezembro último. Segundo comunicado da Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Minas Gerais, o reservatório apresentava nível 6 (grande potencial poluidor). A despeito disso, era classificada, conforme a Agência Nacional de Mineração (ANM), como de “risco baixo”: “De acordo com as informações declaradas pela empresa Vale S.A. no Sistema Integrado de Gestão de Segurança de Barragens de Mineração (SIGBM), pertencente à ANM, com base em vistoria realizada em dezembro de 2018 por um grupo de técnicos da empresa, não foram encontrados indícios de problemas relacionados à segurança da referida estrutura”, aponta o órgão em seu site. A diferença entre as metodologias utilizadas pelos sistemas estaduais e nacional para aferição de riscos e o fato de a empresa ter autonomia para decidir sobre a auditoria de sua barragem são dois imbróglios. “Há um problema de gestão e conflito de interesses”, destaca Milanez.
Ainda no processo preliminar de investigação, um aspecto causou estranheza: os engenheiros André Yassuda e Makoto Manba, apontados como responsáveis pelo laudo fornecido pela Tüv Süd à Vale, foram presos sem, contudo, qualquer comprovação de que tenham cometido crime ou mesmo falha técnica. “Acho um pouco midiático, eles têm endereço, não fugiram, não precisava. Sobra nas costas do corpo da engenharia uma responsabilidade que é compartilhada. Se fizeram algo errado, têm que responder, porém não acredito.” Murilo Pinheiro, presidente da FNE, concorda: “Investigação deve ser feita. Mas é necessário que se assegure a todos os cidadãos o direito constitucional à ampla defesa e se busque realmente justiça.”
Opção econômica e perigosa
Conforme Milanez, além da classificação de estabilidade garantida, quatro elementos convergem nos desastres em Mariana e Brumadinho: sistemas de emergência que não funcionaram; equipamentos de monitoramento danificados, com prejuízo à obtenção de dados de segurança e ausência até mesmo de manutenção corretiva; no processo de licenciamento, falta de análise de risco participativa e planejamento do impacto considerando-se a bacia hidrográfica como um todo; e ambas barragens construídas a montante (quando o alteamento é feito utilizando os próprios rejeitos presentes na estrutura), cujo custo é substancialmente mais baixo e o risco, mais alto. “Temos mais de uma centena desse tipo no Brasil e não sabemos quando a próxima vai romper”, alerta Martinez, que é responsável pela disciplina de segurança de barragens em Itajubá.
Milanez ensina que para minério de ferro a técnica em questão está superada – e o Brasil detém tecnologia e engenharia para adotar outras. “Deveria se priorizar processo a seco ou deslamagem, com uso de filtro prensa. Daí se tem material pastoso, mais denso e viscoso. Havendo alguma falha estrutural, não escorre.” A questão, continua, é “que essa estrutura é mais complexa, exige maior quantidade de energia e tende a elevar o custo operacional”.
Nó ainda é a fiscalização insuficiente. Em nota, a FNE salienta: “Segundo dados divulgados, há 24 mil barragens espalhadas pelo País, das quais apenas 3% foram vistoriadas. Um ínfimo efetivo de 150 fiscais estaria encarregado de todo esse universo, o que é humanamente impossível. Não faltam conhecimento e profissionais capacitados para garantir a segurança da população e a preservação do meio ambiente, mas sim seriedade dos responsáveis por essas estruturas e atuação eficaz dos órgãos públicos encarregados de regular, fiscalizar e punir em caso de inconformidade com as normas estabelecidas.”
O professor da UFJF defende um recall de todas as barragens existentes, feito por força-tarefa de engenheiros independentes. A partir daí, um cronograma para desativação e retirada progressiva, iniciando pelas com maior impacto potencial, muito próximas dos grandes centros ou de mananciais de abastecimento de água.
Fonte: FNE